quinta-feira, junho 30, 2005

Poesias Completas, de Cesário Verde

Fonte:
VERDE, Cesário. Poesias Completas de Cesário Verde. Rio de Janeiro : Ediouro, 1987.

Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de S?o Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:
Emerson Kamiya – S?o Paulo/SP

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POESIAS COMPLETAS
Cesário Verde


DESLUMBRAMENTOS

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo t?o nobre e t?o de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que isso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E t?o alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o p?lo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas m?os,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortes?os.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coraç?o, como um brilhante.

Mas cuidado, milady, n?o se afoite,
Que h?o de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!

SETENTRIONAL

Talvez já te n?o lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
Á tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.

Talvez já te n?o lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que moramos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.

Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como n?o há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.

Talvez já te n?o lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.

Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.

Quando, ? brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Ou nos bicos agrestes dos silvados.

Eu ia desprend?-los, como um pajem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar ? doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos.

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem borboletas doidejantes
Nas tuas formosíssimas madeixas,
Daquela cor das messes lourejantes.

E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de m?os dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas.

Quando Helena, bebíamos, curvados,
As águas nos ribeiros remansosos,
E, nas sombras, olhando os céus amados
Contávamos os astros luminosos.

Quando, uma noite, em ?xtases caímos
Ao sentir o chorar dalgumas fontes,
E os cânticos das r?s que sobre os limos
Quebravam a solid?o dos altos montes.

E assentados nos rudes escabelos,
Sob os arcos de murta e sobre as relvas,
Longamente sonhamos sonhos belos,
Sentindo a fresquid?o das verdes selvas.

Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias
Ouvíamos os meigos ditirambos
Que os rouxinóis teciam nas olaias.

E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais.
Devolvia-te os beijos que me deras.

Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda.

Talvez já te esquecesses dos poemetos,
Revoltos como os bailes do Cassino,
E daqueles byrônicos sonetos
Que eu gravei no teu peito alabastrino.

De tudo certamente te esqueceste,
Porque tudo no mundo morre e muda,
E agora és triste e só como um cipreste,
E como a campa jazes fria e muda.

Esqueceste-te, sim, meu sonho querido,
Que o nosso belo e lúcido passado
Foi um único abraço comprimido,
Foi um beijo, por meses, prolongado.

E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.

E eu passo t?o calado como a Morte
Nesta velha cidade t?o sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia,

E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios.

NOITES GÉLIDAS

MERINA

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alem? que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas l?s forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ing?nua e delicada.

SARDENTA

Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem dourada,
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.

MERIDIONAL

CABELOS

Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escurid?o dum largo e negro mar;

Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as m?os e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilaç?es e meigos céus de luz.

Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tuf?es,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solid?es.

Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e t?o bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!

E, ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;

Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direç?o constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e elanguescer.

E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de ver?o,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostraç?o.

E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilh?es insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos Romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.

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...............................................................................

Ó mantos de veludo espl?ndido e sombrio,
Na vossa vastid?o posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

RESPONSO

I

Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, ?s horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.

Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.

II

É loura como as doces escocesas,
Duma beleza ideal, quase indecisa;
Circunda-se de luto e de tristezas
E excede a melancólica Artemisa.

Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seu pecados.

III

Alta noite, os planetas argentados
Deslizam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas águas mansíssimas do lago.

Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.

IV

E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas ressoam uns suspiros
Dolentes como as súplicas dos cegos.

Fosse eu aquelas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.

V

E ela vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas destronadas,
A contemplar as gôndolas airosas,
Que passam, a giorno iluminadas.

Pudesse eu ser o rude gondoleiro
E ali é que fizera o meu cruzeiro.

VI

De dia, entre os veludos e entre as sedas,
Murmurando palavras aflitivas,
Vagueia nas umbrosas alamedas
E acarinha, de leve, as sensitivas.

Fosse eu aquelas árvores frondosas,
E prendera-lhe as roupas vaporosas.

VII

Ou domina, a rezar, no pavimento
Da capela onde outrora se ouviu missa,
A música dulcíssima do vento
E o sussurro do mar, que se espreguiça.

Pudesse eu ser o mar e os meus desejos
Eram ir borrifar-lhe os pés, com beijos.

VIII

E ?s horas do crepúsculo saudosas,
Nos parques com tapetes cultivados,
Quando ela passa curvam-se amorosas
As estátuas dos seus antepassados.

Fosse eu também granito e a minha vida
Era v?-la a chorar arrependida.

IX

No palácio isolado como um monge,
Erram as velhas almas dos precitos,
E nas noites de inverno ouvem-se ao longe
Os lamentos dos náufragos aflitos.

Pudesse eu ter também uma procela
E as lentas agonias ao pé dela!

X

E ?s lajes, no sil?ncio dos mosteiros,
Ela conta o seu drama negregado,
E o vasto carmesim dos reposteiros
Ondula como um mar ensangüentado.

Fossem aquelas mil tapeçarias
Nossas mortalhas quentes e sombrias.

XI

E assim passa, chorando, as noites belas,
Sonhando uns tristes sonhos doloridos,
E a refletir nas góticas janelas
As estrelas dos céus desconhecidos.

Pudesse eu ir sonhar também contigo
E ter as mesmas pedras no jazigo!
...............................................................................

XII

Mergulha-se em angústias lacrimosas
Nos ermos dum castelo abandonado,
E as próximas florestas tenebrosas
Repercutem um choro amargurado.

Uníssemos, nós dois, as nossas covas,
Ó doce castel? das minhas trovas!

NOITE FECHADA

Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?

Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de m?os dadas:
?s janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.

N?o me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado tempo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
N?o me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.

Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.

A Lua dava tr?mulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!

E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
E onde, talvez, se faça inda o jazigo
Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pele,
Tua luva, teu véu, o que tu és!
N?o sei que tentaç?o é que te impele
Os pequeninos e cansados pés.

Sei que em tudo atentavas, tudo vias!
Eu por mim tinha pena dos marçanos,
Como ratos, nas gordas mercearias,
Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros,
Que aparecem ao fundo dumas minas,
E ? crua luz os pálidos barbeiros
Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando!
O povo folga, estúpido e grisalho!
E os artistas de ofício iam passando,
Com as férias, ralados do trabalho.

O quadro interior, dum que ? candeia,
Ensina a filha a ler, meteu-me dó!
Gosto mais do plebeu que cambaleia,
Do b?bado feliz que fala só!

De súbito, na volta de uma esquina,
Sob um bico de gás que abria em leque,
Vimos um militar, de barretina
E gal?es marciais de pechisbeque,

E enquanto ela falava ao seu namoro,
Que morava num prédio de azulejo,
Nos nossos lábios retiniu sonoro
Um vigoroso e formidável beijo!

E assim ao meu capricho abandonada,
Erramos por travessas, por vielas,
E passamos por pé duma tapada
E um palácio real com sentinelas.

E eu que busco a moderna e fina arte,
Sobre a umbrosa calçada sepulcral,
Tive a rude intenç?o de violentar-te
Imbecilmente, como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e da aragem,
Como longínquos bosques muito ermos,
Tu querias no meio da folhagem
Um ninho enorme para nós vivermos.

E, ao passo que eu te ouvia abstratamente,
Ó grande pomba tépida que arrulha,
Vinham batendo o macadame fremente,
As patadas sonoras da patrulha,

E através a imortal cidadezinha,
Nós fomos ter ?s portas, ?s barreiras,
Em que uma negra multid?o se apinha
De tecel?es, de fumos, de caldeiras.

Mas a noite dormente e esbranquiçada
Era uma esteira lúcida de amor;
Ó jovial senhora perfumada,
Ó terrível criança! Que esplendor!

E ali começaria o meu desterro!...
Lodoso o rio, e glacial, corria;
Sentamo-nos, os dois, num novo aterro
Na muralha dos cais de cantaria.

Nunca mais amarei, já que n?o amas,
E é preciso, decerto, que me deixes!
Toda a maré luzia como escamas,
Como alguidar de prateados peixes.

E como é necessário que eu me afoite
A perder-me de ti por quem existo,
Eu fui passar ao campo aquela noite
E andei léguas a pé, pensando nisto.

E tu que n?o serás somente minha,
?s carícias leitosas do luar,
Recolheste-te, pálida e sozinha,
? gaiola do teu terceiro andar!

MANH?S BRUMOSAS

Aquela, cujo amor me causa alguma pena,
P?e o chapéu ao lado, abre o cabelo ? banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manh?, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, bucólica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

Que línguas fala? A ouvir-lhe as inflex?es inglesas,
– Na névoa, a caça, as pescas, os rebanhos! –
Sigo-lhe os altos pés por estas asperezas;
O meu desejo nada em época e banhos,
E, ave de arribaç?o, ele enche de surpresas
Seus olhos de perdiz, redondos e castanhos.

As irlandesas t?m soberbos desmazelos!
Ela descobre assim, com lentid?es ufanas,
Alta, escorrida, abstrata, os grossos tornozelos;
E como aquelas s?o marítimas, serranas,
Sugere-se o naufrágio, as músicas, os gelos
E as redes, a manteiga, os queijos, as choupanas.

Parece um rural boy! Sem brincos nas orelhas,
Traz um vestido claro a comprimir-lhe os flancos,
Bot?es a tiracolo e aplicaç?es vermelhas;
E ? roda, num país de prados e barrancos,
Se as minhas mágoas v?o, mansíssimas ovelhas,
Correm os seus desdéns, como vitelos brancos.

E aquela, cujo amor me causa alguma pena,
P?e o chapéu ao lado, abre o cabelo ? banda,
E com a forte voz cantada com que ordena,
Lembra-me, de manh?, quando nas praias anda,
Por entre o campo e o mar, católica, morena,
Uma pastora audaz da religiosa Irlanda.

FLORES VELHAS

Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um vôo.

Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimado ?s luzes dos planetas:
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as vibraç?es, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me ? memória idílios imortais.

Diziam-me que tu, no flórido passado,
Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e de emoç?es mimosas;

E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura,
Que n?o me desgostou nem uma vez sequer,
Eu n?o sabia haurir do cálix da ventura
O néctar que nos vem dos mimos da mulher.

Falou-me tudo, tudo, em tons comovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes;
As falas quase irm?s do vento com as flores
E a mole exalaç?o das várzeas recendentes.

Inda pensei ouvir aquelas coisas mansas
No ninho de afeiç?es criado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes das crianças,
E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.

Lembre-me muito, muito, ó símbolo das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas plantas
Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.

Mas tu agora nunca, ah! Nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu n?o te beijarei, ?s horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados...

Eu, por n?o ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepç?es e os grandes desalentos
E tenho um riso meu como o sorrir de Judas.

E tudo enfim passou, passou como uma pena
Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais,
E aquela doce vida, aquela vida amena,
Ah! Nunca mais virá, meu lírio, nunca mais!

Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando ontem eu pisei, bem magro e bem curvado,
A areia em que rangia a saia roçagante,
Que foi na minha vida o céu aurirrosado,

Eu tinha t?o impresso o cunho da saudade,
Que as ondas que formei das suas ilus?es
Fizeram-me enganar na minha soledade
E as asas ir abrindo ?s minhas impress?es.

Soltei com devoç?o lembranças inda escravas,
No espaço construí fantásticos castelos,
No tanque debrucei-me em que te debruçavas,
E onde o luar parava os raios amarelos.

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,
Suster a minha fé, num véu consolador,
O teu divino olhar que as pedras amolece,
E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

E cheio das vis?es em que a alma se dilata,
Julguei-me no teu peito, ó coraç?o que dormes!
E foram embalar-me as águas da cascata
De búzios naturais e conchas multiformes.

Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as minhas m?os,
E imaginei ouvir ao conversar das aves
As célicas canç?es dos anjos teus irm?os.

E como na minha alma a luz era uma aurora,
A aragem ao passar parece que me trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,
E o teu perfume forte, o teu perfume doce,

Agonizava o Sol gostosa e lentamente,
Um sino que tangia, austero e com vagar,
Vestia de tristeza esta paix?o veemente,
Esta doença enfim, que a morte há de curar.

E quando me envolveu a noite, noite fria,
Eu trouxe do jardim duas saudades roxas,
E vim a meditar em que me cerraria,
Depois de eu morrer, as pálpebras já frouxas.

Pois que, minha adorada, eu peço que n?o creias
Que eu amo esta exist?ncia e n?o lhe queira um fim;
Há tempos que n?o sinto o sangue pelas veias
E a campa talvez seja afável para mim.

Portanto, eu, que n?o cedo ?s atraç?es do gozo,
Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo,
E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,
Em breve te olharei calado e moribundo.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres,
Só quero abandonar a vida triste e má
Na véspera do dia em que também morreres,
Morreres de pesar, por eu n?o viver já!

E n?o virás, chorosa, aos rústicos tapetes,
Com lágrimas regar as plantaç?es ruins;
E esperar?o por ti, naqueles alegretes,
As dálias a chorar nos braços dos jasmins!

CAD?NCIAS TRISTES

Ó bom Jo?o de Deus,o lírico imortal,
Eu gosto de te ouvir falar timidamente
Num beijo, num olhar, num plácido ideal;
Eu gosto de te ver contemplativo e crente,
Ó pensador suave, ó lírico imortal!

E fico descansada, ? noite, quando cismo
Que tentam proscrever a sensibilidade,
E querem denegrir o cândido lirismo;
Porque o teu rosto exprime uma serenidade,
Que vem tranqüilizar-me, ? noite, quando cismo!

O enleio, a simpatia e toda a comoç?o
Tu mostras no sorriso ascético e perfeito;
E tens o edificante e doce amor crist?o,
Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,
Que é toda a melodia e toda a comoç?o!

Poeta da mulher! Atende, escuta, pensa,
Já que és o nosso irm?o, já que és nosso mestre.
Que ela, ou doente sempre ou na convalescença,
É como a flor de estufa em solid?o silvestre,
Ao tempo abandonada! Atende, escuta, pensa.

E, ó meigo visionário, ó meu devaneador,
O sentimentalismo há de mudar de fases;
Mas só quando morrer a derradeira flor
É que n?o h?o de ler-se os versos que tu fazes,
Ó bom Jo?o de deus, ó meu devaneador!

NUM ÁLBUM

I

És uma tentadora: o seu olhar amável
Contém perfeitamente um poço de maldade,
E o colo que te ondula, o colo inexorável
N?o sabe o que é paix?o, e ignora o que é bondade.

II

Quando me julgas preso a eróticas cadeias
Radia-te na fronte o céu das alvoradas,
E quando choro ent?o é quando garganteias
As óperas de Verdi e as árias estimadas.

III

Mas eu hei de afinal seguir-te a toda a parte,
E um dia quando eu for a sombra dos teus passos,
Tantos crimes terás, que eu hei de processar-te,
E enfim hás de morrer na forca dos meus braços.

LOURA

Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto ?s montras dos livreiros
Quando passaste irônica e insolente,
Mal pousando no ch?o os pés ligeiros.

O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.

E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparaç?es estranhas, sem raz?o,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os gal?es sobre os panos de um caix?o.

Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.

Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
N?o fosses suspeitar que te seguia.

E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.

E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.

Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Cada vez caminhava mais atento.

Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho,
A ti que és nobre e rica, que és alguém,
Eu que de nada valho e nada tenho.

Correu-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Este olhar resignado do vadio
Que fita a exposiç?o de um confeiteiro.

Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo de ouro que faz mal;
N?o achei essa rima que buscava,
Mas compus este quadro natural.

CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei tr?s maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravaç?o nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me ? secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulm?es doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
T?o lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redaç?o, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceç?es merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas ?s fortunas,
Mas sim, por defer?ncia, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ing?nuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? N?o lhes conv?m, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, n?o há quest?o que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulaç?o repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combust?o das brasas,
N?o foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e p?o! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, ? tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canç?o plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

HUMILHAÇ?ES
De todo o coraç?o – a Silva Pinto

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Jó,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos sal?es dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto v?o passando as cortes?s e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.

Na representaç?o dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto ? porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e v? que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarniç?es das rendas;
E, muito embora tu, burgu?s, me n?o entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Porque n?o podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéia
De v?-la aproximar, sentado na platéia,
De t?-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos bot?es;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
- Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovaç?es.

Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
T?m menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.

Ao mesmo tempo, eu n?o deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o ch?o se abrisse para me abater.

Saí: mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...

A DÉBIL

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa exist?ncia honesta, de cristal.

Sentado ? mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel t?o velha e corruptora,
Tive tenç?es de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que n?o o suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa m?e, que te ama tanto,
Que n?o te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentaç?o,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da naç?o.

“Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!”
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, ent?o, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és t?nue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

IRONIAS DO DESGOSTO

“Onde é que te nasceu” – dizia-me ela ?s vezes –
“O horror calado e triste ?s coisas sepulcrais?
“Por que é que n?o possuis a verve dos franceses
“E aspiras, em sil?ncio, os frascos dos meus sais?

“Por que é que tens no olhar, moroso e persistente,
“As sombras dum jazigo e as fundas abstraç?es,
“E abrigas tanto fel no peito, que n?o sente
“O abalo feminil das minhas expans?es?

“Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso;
“Mas quando tentas rir parece ent?o, meu bem,
“Que est?o edificando um negro cadafalso
“E ou vai alguém morrer ou v?o matar alguém!

“Eu vim – n?o sabes tu? – para gozar em maio,
“No campo, a quietaç?o banhada de prazer!
“N?o v?s, ó descorado, as vestes com que saio,
“E os júbilos, que abril acaba de trazer?

“N?o v?s como a campina é toda embalsamada
“E como nos alegra em cada nova flor?
“Ent?o por que é que tens na fronte consternada”
“Um n?o-sei-qu? tocante e enternecedor?”

Eu só lhe respondia: - “Escuta-me. Conforme
“Tu vibras os cristais da boca musical,
“Vai-nos minando o tempo, o tempo – o cancro enorme
“Que te há-de corromper o corpo de vestal.

“E eu calmamente sei, na dor que me amortalha,
“Que a tua cabecinha ornada ? Rabagas,
“A pouco e pouco há-de ir tornando-se grisalha
“E em breve ao quente sol e ao gás alvejará!

“E eu que daria um rei por cada teu suspiro,
“Eu que amo a mocidade e as modas fúteis, v?s,
“Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro
“O teu cabelo escuro ?s veneráveis c?s!”

NUM BAIRRO MODERNO
A Manuel Ribeiro

Dez horas da manh?; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama do papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho da horta aglomerada
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a.
Pôs-se de pé, ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algod?o azul da meia,
Se ela se curva, esguelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; n?o converses.
Eu n?o dou mais.” ? muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente – que vis?o de artista! –
Se eu transformasse os simples vegetais,
? luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporç?es carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz ?s costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E ?s portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, ao bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos d?o o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
S?o tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas – os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posiç?es de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como alguém que tudo aquilo jante,
Surge um mel?o, que lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons coraç?es pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O Sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortel? que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
“N?o passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...”

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao ch?o de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

“Muito obrigada! Deus lhe d? saúde!”
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digest?o desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre, afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maç?s do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanaç?es sadias,
Ouço um canário – que infantil chilrada!
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

CRISTALIZAÇ?ES
A Bettencourt Rodrigues

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha os calceteiros,
Com lentid?o, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua,

Como as elevaç?es secaram do relento,
E o descoberto Sol abafa e cria!
A frialidade exige o movimento;
E as poças de água, como um ch?o vidrento,
Refletem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manh? bonita,
Uns barrac?es de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

N?o se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra – que uni?o sonora! –
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. Os rapag?es, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A l? dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude m?s, que n?o consente as flores,
Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
As árvores despidas. Sóbrias cores!
Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio – o grande agente! –
Carros de m?o, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
V?-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multid?es, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria:
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exato.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tato, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De t?o lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me o fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo,
Dois assobiam, altas as marretas
Possantes, grossas, temperadas de aço;
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim a bestas v?o curvadas!
Que vida t?o custosa! Que diabo!
E os cavadores pousam as enxadas,
E cospem nas calosas m?o gretadas,
Para que n?o lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
Uma bandeira penso que transluz!
Com ela sofres, bebes, agonizas;
Listr?es de vinho lançam-lhe divisas,
E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
Surge um perfil direito que se aguça;
E ar matinal de quem saiu da toca,
Uma figura fina, desemboca,
Toda abafada num casaco ? russa.

Donde ela vem! A atriz que tanto cumprimento
E a quem, ? noite na platéia, atraio
Os olhos lisos como polimento!
Com seu rostinho estreito, friorento,
Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
Como laj?es. Os bons trabalhadores!
Os filhos das lezírias, dos montados;
Os das planícies, altos aprumados;
Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feiç?es , o queixo hostil, distinto,
Furtiva a tiritar em suas peles,
Espanta-me a atrizita que hoje pinto,
Neste dezembro enérgico, sucinto,
E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
Eles, bovinos, másculos, ossudos,
Encaram-na sangüínea, brutamente:
E ela vacila, hesita, impaciente
Sobre as botinhas de tac?es agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
Sem que inda o público a passagem abra,
O demonico arrisca-se, atravessa
Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

FRÍGIDA

I

Balzac é meu rival, minha senhora inglesa!
Eu quero-a porque odeio as carnaç?es redondas!
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

II

Admiro-a. A sua longa e plácida estatura
Exp?e a majestade austera dos invernos.
N?o cora no seu todo a tímida candura;
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos.

III

Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante,
Numa das m?os franzindo um lençol de cambraia!...
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante,
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia!

IV

Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite,
Mas nunca a fitarei duma maneira franca;
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite,
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca!

V

Pudesse-me eu prostar, num meditado impulso,
Ó gélida mulher bizarramente estranha,
E tr?mulo depor os lábios no seu pulso,
Entre a macia luva e o punho de bretanha!...

VI

Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias.
Ao encarar consigo a fantasia pasma;
Pausadamente lembra o silvo das jibóias
E a marcha demorada e muda dum fantasma.

VII

Metálica vis?o que Charles Baudelaire
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos,
Permita que eu lhe adule a distinç?o que fere,
As curvas da magreza e o lustre dos adornos!

VIII

Desliza como um astro, um astro que declina,
T?o descansada e firme é que me desvaria,
E tem a lentid?o duma corveta fina
Que nobremente vá num mar de calmaria.

IX

N?o me imagine um doido. Eu vivo como um monge,
No bosque das ficç?es, ó grande flor do Norte!
E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe
O sossegado espectro angélico da Morte!

X

O seu vagar oculta uma elasticidade
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso,
E a sua glacial impassibilidade
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso.

XI

Porém, n?o arderei aos seus contactos frios,
E n?o me enroscará nos serpentinos braços:
Receio suportar febr?es e calafrios;
Adoro no seu corpo os movimentos lassos.

XII

E se uma vez me abrisse o colo transparente,
E me osculasse, enfim, flexível e submissa,
Eu julgara ouvir alguém, agudamente,
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça!

DE VER?O

I

No campo; eu acho nele a musa que me anima:
A claridade, a robustez, a aç?o.
Esta manh?, saí com minha prima,
Em quem eu noto a mais sincera estima
E a mais completa e séria educaç?o.

II

Criança encantadora! Eu mal esboço o quadro
Da lírica excurs?o, de intimidade.
N?o pinto a velha ermida com seu adro;
Sei só desenho de compasso e esquadro,
Respiro indústria, paz, salubridade.

III

Andam cantando aos bois; vamos cortando as leiras;
E tu dizias: “Fumas? E as fagulhas?
Apaga-o teu cachimbo junto ?s eiras;
Colhe-me uns brincos rubros nas ginjeiras!
Quanto me alegra a calma das debulhas!”

IV

E perguntavas sobre os últimos inventos
Agrícolas. Que aldeias t?o lavadas!
Bons ares! Boa luz! Bons alimentos!
Olha: Os saloios vivos, corpulentos,
Como nos fazem grandes barretadas!

V

Voltemos. Na ribeira abundam as ramagens
Dos olivais escuros. Onde irás?
Regressam os rebanhos das pastagens;
Ondeiam milhos, nuvens e miragens,
E, silencioso, eu fico para trás.

VI

Numa colina azul brilha um lugar caiado.
Belo! E arrimada ao cabo da sombrinha,
Como teu chapéu de palha desabado,
Tu continuas na azinhaga; ao lado
Verdeja, vicejante, a nossa vinha.

VII

Nisto, parando, como alguém que se analisa,
Sem desprender do ch?o teus olhos castos,
Tu começastes, harmônica, indecisa,
A arregaçar a chita, alegre e lisa
Da tua cauda um poucochinho a rastos.

VIII

Espreitam-te, por cima, as frestas dos celeiros;
O Sol abrasa as terras já ceifadas,
E alvejam-te, na sombra dos pinheiros,
Sobre os teus pés decentes, verdadeiros,
As saias curtas, frescas, engomadas.

IX

E, como quem saltasse, extravagantemente,
Em rego de água sem se enxovalhar,
Tu, a austera, a gentil, a inteligente,
Depois de bem composta, deste ? frente
Uma pernada cômica, vulgar!

X

Exótica! E cheguei-me ao pé de ti. Que vejo!
No atalho enxuto, e branco das espigas
Caídas das carradas no salmejo,
Esguio e a negrejar em um cortejo,
Destaca-se um carreiro de formigas.

XI

Elas, em sociedade, espertas, diligentes,
Na natureza tr?mula de sede,
Arrastam bichos, uvas e sementes;
E atulham, por instinto, previdentes,
Seu antros quase ocultos na parede.

XII

E eu desatei a rir como qualquer macaco!
“Tudo n?o as esmagares contra o solo!”
E ria-me, eu ocioso, inútil, fraco,
Eu de jasmim na casa do casaco
E de óculo deitado a tiracolo!

XIII

“As ladras da colheita! Eu se trouxesse agora
Um sublimado corrosivo, uns pós
De solim?o, eu, sem maior demora,
Envenená-las-ia! Tu por ora,
Preferes o romântico ao feroz.

XIV

Que compaix?o! Julgava até que matarias
Esses insetos importunos! Basta.
Merecem-te espantosas simpatias?
Eu felicito suas senhorias,
Que honraste com um pulo de ginasta!”

XV

E enfim calei-me. Os teus cabelos muito louros
Luziam, com doçura, honestamente;
De longe o trigo em monte, e os calcadouros,
Lembravam-me fus?es de imensos ouros,
E o mar um prado verde e florescente.

XVI

Vibravam, na campina, as chocas da mana;
Vinham uns carros a gemer no outeiro,
E finalmente, enérgica, zangada,
Tu inda assim bastante envergonhada,
Volveste-me, apontando o formigueiro:

XVII

“N?o me incomode, n?o, com ditos detestáveis!
N?o seja simplesmente um zombador!
Estas mineiras negras, incansáveis,
S?o mais economistas, mais notáveis,
E mais trabalhadoras que o senhor.”

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL
A Guerra Junqueiro

I - AVE-MARIA

Nas nossas ruas, ao noitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás estravassado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando ? via-férrea os que se v?o. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposiç?es, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, no mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificaç?es somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquet?o ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueir?es, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, ent?o, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Cam?es no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu n?o verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado ingl?s vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
?s portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se pos arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

V?m sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, ? cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carv?o,
Desde manh? ? noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecç?o!


II - NOITE FECHADA

Toca-se ?s grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje est?o velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
T?o mórbido me sinto, ao acender das luzes;
? vista das pris?es, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coraç?o que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construç?es retas, iguais, crescidas,
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporç?es guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulaç?o de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paix?o defunta! Ao lampi?es distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir ?s montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas s?o comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; ?s mesas de emigrados,
Ao riso e ? crua luz joga-se o dominó.

III - AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo ch?o minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a p?o no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecç?es e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! N?o poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difus?o dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excel?ncia atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balc?es de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, as duas tintas. Perto,
Escarvam, ? vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros,como estrelas, pouco a pouco;
Da solid?o regouga um cauteleiro rouco;
Tomam-se mausoléus as armaç?es fulgentes.

“Dó da miséria!... Compaix?o de mim!...”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim?

IV - HORAS MORTAS

O teto fundo de oxig?nio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
V?m lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-se a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que port?es! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, ?s escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no sil?ncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu n?o morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeiç?o das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mans?es de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trar?o a nitidez ?s vidas!
Eu quero as vossas m?es e irm?s estremecidas,
Numas habitaç?es translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nômadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastid?es aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu n?o receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os c?es parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, os imorais, nos seus roup?es ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimens?es de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

EM PETIZ

I – DE TARDE

Mais morta do que viva, a minha companheira
Nem força teve em si para soltar um grito;
E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,
Como um homenzarr?o servi-lhe de barreira!

Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,
Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas;
E, tetas a abanar, as m?es, de largas ancas,
Desciam mais atrás, malhadas e turinas.

Do seio do lugar – casitas com postigos –
Vem-nos o leite. Mas batizam-no primeiro.
Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,
Cujo preg?o vos tira ao vosso sono, amigos!

Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale:
Várzeas, povoaç?es, pegos, sil?ncios vastos!
E os fartos animais, ao recolher dos pastos,
Roçavam pelo teu “costume de percale”.

Já n?o receias tu essa vaquita preta,
Que eu seguirei, prendi por um chavelho? Juro
Que estavas a tremer, cosida com o muro,
Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!

II – IRM?OZINHOS

Pois eu, que no deserto dos caminhos,
Por ti me expunha imenso, contra as vacas;
Eu, que apartava as mansas das velhacas,
Fugia com terror dos pobrezinhos!

Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço!
Os velhos, que nos rezam padre-nossos;
Os mandri?es que rosnam, altos, grossos;
E os cegos que se apóiam sobre o moço.

Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros,
Os que a poeira no suor mascarra,
Chegam das feiras a tocar guitarra,
Rolam os olhos como dois escarros!

E os pobres metem medo! Os de marmita,
Para forrar, por ano, alguns patacos,
Entrapam-se nas mantas com buracos,
Choramingando, a voz rachada, aflita.

Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas pútridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!

Querem viver! E picam-se nos cardos;
Correm as vilas; sobem os outeiros;
E ?s horas de calor, nos esterqueiros,
De roda deles zumbem os moscardos.

Aos sábados, os monstros, que eu lamento,
Batiam ao port?o com seus cajados;
E um aleijado com os pés quadrados,
Pedia-nos de cima de um jumento.

O resmung?o! Que barbas! Que sacolas!
Cheirava a migas, a bafio, a arrotos;
Dormia as noutes por telheiros rotos,
E sustentava o burro a p?o de esmolas.

*

Ó minha loura e doce como um bolo!
Afável hóspeda na nossa casa,
Logo que a tórrida cidade abrasa,
Como um enorme forno de tijolo!

Tu visitavas, esmoler, garrida,
Umas crianças num casal queimado;
E eu, pela estrada, espicaçava o gado,
Numa atitude esperta e decidida.

Por lobisomens, por pap?es, por bruxas,
Nunca sofremos o menor receio.
Teríveis, vós, porém, o meu asseio,
Mendigazitas sórdidas, gorduchas!

Vícios, sez?es, epidemias, furtos,
Decerto, fermentavam entre lixos;
Que podrid?o cobria aqueles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!

*

Sei de uma pobre, apenas, sem desleixos,
Ruça, descalça, a trote nos atalhos,
E que lavava o corpo e os seus retalhos
No rio, ao pé dos choupos e dos freixos,

E a doida a quem chamavam a “Ratada”
E que falava só! Que antipatia!
E se com ela a malta contendia,
Quanta indec?ncia! Quanta palavrada!

Uns operários, nestes descampados,
Também surdiam, de chapéu de coco,
Dizendo-se, de olhar rebelde e louco,
Artistas despedidos, desgraçados.

Muitos! E um b?bado – o Cam?es – que fora
Rico, e morreu a mendigar, zarolho,
Com uma pala verde sobre um olho!
Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.

E o resto? Bandos de selvagenzinhos:
Um nu que se gabava de maroto;
Um, que cortada a m?o, coçava o coto,
E os bons que nos tratavam por padrinhos.

Pediam fatos, botas, cobertores!
Outro jogava bem o pau, e vinha
Chorar, humilde, junto da cozinha!
“Cinco-réizinhos!... Nobres benfeitores!...”

E quando alguns ficavam nos palheiros,
E de manh? catavam os piolhos:
Enquanto o sol batia nos restolhos
E os nossos c?es ladravam, rezingueiros!

Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos,
Dos surdos, dos manhosos, dos manetas.
Sulcavam as calçadas, as muletas;
Cantavam, no pomar, os pintarroxos!

III – HISTÓRIAS

Cismático, doente, azedo, apoquentado,
Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,
Assim que um besunt?o dos tais se apercebia
Da minha blusa azul e branca, de riscado.

Mináveis-me, ao ser?o, a cabecita loura.
Com contos de província, ing?nuas criaditas:
Quadrilhas assaltando as quintas mais bonitas,
E pondo a gente fina, em postas, de salmoura!

Na noite velha, a mim, como tiç?es ardendo,
Fitavam-me os olh?es pesados das ciganas;
Deitavam-nos o fogo aos prédios e arribanas;
Cercava-me um inc?ndio ensanguentado, horrendo.

E eu que era um caval?o, eu que fazia pinos,
Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto;
Sonhava que os ladr?es – homens de quem me espanto –
Roubavam para azeite a carne dos meninos!

E protegia-te eu, naquele outono brando,
Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas,
Gritos de maiorais, mugidos de boiadas,
Branca de susto, meiga e míope, estacando!

NÓS
A. A. de S. V.

I

Foi quando em dois ver?es, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta populaç?o, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até ent?o nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns mont?es de malvas
que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manh?, em vez dos trens dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucess?o dos armazéns fechados!
Como um domingo ingl?s na city, que desterros!

Sem canalizaç?o, em muitos burgos ermos
Secavam dejeç?es cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminaç?o a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatr?o ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, ? solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetaç?o, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebraç?o de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órf?os e em viúvas,
E em perman?ncia olhando o horizonte em brasa,
N?o quis voltar sen?o depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde ent?o, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!

II

Que de fruta! E que fresca e tempor?,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o Sol, nos talh?es e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manh?!

O laranjal de folhas negrejantes,
(Porque os terrenos s?o resvaladiços)
desce em socalcos todos os maciços,
como uma escadaria de gigantes.

Das courelas, que criam cereais,
De que os donos – ainda! – pagam foros,
Dividem-no fechados pitosporos,
Abrigos de raízes verticais.

Ao meio, a casaria branca assenta
? beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, numa encosta soalhenta!

Entretanto, n?o há maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!

Muito ao fundo, entre olmeiros seculares,
Seca o rio! Em tr?s meses de estiagem,
O seu leito é um atalho de passagem,
Pedregosíssimo, entre dois lugares.

Como lhe luzem seixos e burgaus
Roliços! E marinham nas ladeiras
Os renques africanos das piteiras
Que como alóes espigam altos paus

Montanhas inda mais longinquamente,
Com restevas e combros como boças,
Lembram cabeças estupendas, grossas,
De cabelo grisalho, muito rente.

E, a contrastar, nos vales, em geral,
Como em vidraça duma enorme estufa,
Duma vitalidade equatorial!

Que de frugalidades nós criamos!
Que torr?o espontâneo que nós somos!
Pela outonal maturaç?o dos pomos,
Com a carga, no ch?o pousam os ramos.

E assim postas, nos barros e areais,
As macieiras vergadas fortemente,
Parecem, duma fauna surpreendente
Os pólipos enormes, diluviais.

Contudo, nós n?o temos na fazenda,
Nem uma planta só de mero ornato!
Cada pé mostra-se útil, é sensato,
Por mais aromas que recenda!

Finalmente, na fértil depress?o,
Nada se v? que a nossa m?o n?o regre:
A floresc?ncia dum matiz alegre
Mostra um sinal – a frutificaç?o!

*

Ora, há dez anos, neste ch?o de lava
E argila e areia e aluvi?es dispersas,
Entre espécies botânicas diversas,
Forte, a nossa família radiava!

Unicamente, a minha doce irm?,
Como uma t?nue e imaculada rosa,
Dava a nota galante a melindrosa
Na trabalhadeira rústica, alde?.

E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!

Ai daqueles que nascem neste caos,
E, sendo fracos, sejam generosos!
As doenças assaltam os bondosos
E – custa a crer – deixam viver os maus!

*

Fecho os olhos cansados, e descrevo
Das telas da memória retocadas,
Biscates, hortas, batatais, latadas,
No país montanhoso, com relevo!

Ah! que aspectos benignos e ruais
Nesta localidade tudo tinha,
Ao ires, com o banco de palhinha,
Para a sombra que faz nos parreirais!

Ah! quando a calma, ? sesta, nem consente
Que uma folha se mova ou se desmanche,
Tu, refeita e feliz com o teu lunch,
Nos ajudavas, voluntariamente!...

Era admirável – neste grau do Sul! –
Entre a rama avistar teu rosto alvo,
Ver-te escolhendo a uva diagalvo,
Que eu embarcava para Liverpool.

A exportaç?o de frutas era um jogo:
Dependiam da sorte do mercado
O boal, que é de pérolas formado,
E o ferral, que é ardente e cor de fogo!

Em agosto, ao calor canicular,
Os pássaros e enxames tudo infestam.
Tu cortavas os bagos que n?o prestam
Com a tua tesoura de bordar.

Douradas, pequeninas, as abelhas,
E negros, volumosos, os besouros,
Circundavam, com ímpetos de touros,
As tuas candidíssimas orelhas.

Se uma vespa lançava o seu ferr?o
Na tua cútis – pétala de leite! –
Nós colocávamos dez-réis e azeite
Sobre a galante, a rósea inflamaç?o!

E se um de nós, já farto, arrenegado,
Com o chapéu caçava a bicharia,
Cada zang?o voando, ? luz do dia,
Lembrava o teu dedal arremessado.

*

Que de encantos! Na força do calor
Desabrochavas no padr?o da bata,
E, surgindo da gola e da gravata,
Teu pescoço era o caule duma flor!

Mas que cegueira a minha! Do teu porte
A fina curva, a indefinida linha,
Com bondades de herbívora mansinha,
Eram prenúncios de fraqueza e morte!

? procura da libra e do shilling,
Eu andava abstrato e sem que visse
Que o teu alvor romântico de miss
Te obrigava a morrer antes de mim!

E antes tu, ser lindíssimo, nas faces
Tivesses “pano” como as camponesas:
E sem brancuras, sem delicadezas,
Vigorosa e plebéia, inda durasses!

Uns modos de carnívora feroz
Podias ter em vez de inofensivos;
Tinhas caninos, tinhas incisivos,
E podias ser rude como nós!

Pois neste sítio, que era de sequeiro,
Todo o g?nero ardente resistia,
E, ? larguíssima luz do Meio-Dia,
Tomava um tom opálico e trigueiro!

*

Sim! Europa do Norte, o que sup?es
Dos vergéis que abastecem teus banquetes,
Quando ?s docas com frutas, os paquetes
Chegam antes das tuas estaç?es?!

Oh! As ricas primeurs da nossa terra
E as tuas frutas ácidas, tardias,
No azedo amoniacal das queijarias
Dos fleumáticos farmers de Inglaterra!

Ó cidades fabris, industriais,
De nevoeiros, poeiradas de hulha,
Que pensais do país que vos atulha
Com a fruta que sai de seus quintais?

Todos os anos, que frescor se exala!
Abundâncias felizes que eu recordo!
Carradas brutas que iam para bordo!
Vapores por aqui fazendo escala!

Uma alta parreira moscatel
Por doce n?o servia para embarque:
Palácios que rodeiam Hyde-Park,
N?o conheceis esse divino mel!

Pois a Coroa, o Banco, o Almirantado,
N?o as t?m nas florestas em que há corças,
Nem em vós que dobrais as vossas forças,
Pradarias dum verde ilimitado!

Anglos-saxônios, tendes que invejar!
Ricos suicidas,comparai convosco!
Aqui tudo espontâneo, alegre, tosco,
Facílimo, evidente, salutar!

Oponde ?s regi?es que d?o os vinhos
Vossos montes de escórias inda quentes!
E as febris oficinas estridentes
?s nossas tecelagens e moinhos!

E ó condados mineiros! Extens?es
Carboníferas! Fundas galerias!
Fábricas a vapor! Cutelarias!
E mecânicas, tristes fiaç?es!

Bem sei que preparais corretamente
O aço e a seda, as lâminas e o estofo;
Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo,
Tudo o que há de mais rijo e resistente!

Mas isso tudo é falso, é maquinal,
Sem vida, como um círculo ou um quadrado,
Com essa perfeiç?o do fabricado,
Sem o ritmo do vivo e do real!

E cá o santo Sol, sobre isto tudo,
Faz conceber as verdes ribanceiras;
Lança as rosáceas belas e fruteiras
Nas searas de trigo palhagudo!

Uma aldeia daqui é mais feliz,
Londres sombria, em que cintila a corte!...
Mesmo que tu, que vives a compor-te,
Grande seio arquejante de Paris!...

Ah! Que de glória, que de colorido,
Quando, por meu mandado e meu conselho,
Cá se empapelam “as maç?s de espelho”
Que Herbert Spencer talvez tenha comido!

Para alguns s?o prosaicos, s?o banais
Estes versos de fibra suculenta;
Como se a polpa que nos dessedenta
Nem ao menos valesse uns madrigais!

Pois o que a boca trava com surpresas
Sen?o as frutas tônicas e puras!
Ah! Num jantar de carnes e gorduras
A graça vegetal das sobremesas!...

Jack, marujo ingl?s, tu tens raz?o
Quando, ancorando em portos como os nossos,
As laranjas com cascas e caroços
Comes com bestial sofreguid?o!...

*

A impress?o doutros tempos, sempre viva,
Dá estremeç?es no meu passado morto,
E inda viajo, muita vez, absorto,
Pelas várzeas da minha retentiva.

Ent?o recordo a paz familiar,
Todo um painel pacífico de enganos!
E a distância fatal duns poucos anos
É uma lente convexa, de aumentar.

Todos os tipos mortos ressuscito!
Perpetuam-se assim alguns minutos!
E eu exagero os casos diminutos
Dentro dum véu de lágrimas bendito.

Pinto quadros por letras, por sinais,
T?o luminosos como os do Levante,
Nas horas em que a calma é mais queimante,
Na quadra em que o Ver?o aperta mais.

Como destacam, vivas, certas cores,
Na vida externa cheia de alegrias!
Horas, vozes, locais, fisionomias,
As ferramentas, os trabalhadores!

Aspiro um cheiro a cozedura, e a lar
E a rama de pinheiro! Eu adivinho
O resinoso, o t?o agreste pinho
Serrado nos pinhais a beira-mar.

Vinha cortada, aos feixes, a madeira,
Cheia de nós, de imperfeiç?es, de rachas;
Depois armavam-se, num pronto as caixas
Sob uma clama espessa e calaceira!

Feias e fortes! Punham-lhes papel
A forrá-las. E em grossa serradura
Acamava-se a uva prematura
Que n?o deve servir para tonel!

Cingiam-nas com arcos de castanho
Nas ribeiras cortados, nos riachos;
E eram de açúcar e calor os cachos,
Criados pelo esterco e pelo amanho!

Ó pobre estrume, como tu comp?es
Estes pâmpanos doces como afagos!
“Dedos-de-dama”: transparentes bagos!
“Tetas-de-cabra”: lácteas carnaç?es!

E n?o eram caixitas bem dispostas
Como as passas de Málaga e Alicante;
Com sua forma estável, ignorante,
Estas pesavam, brutalmente, ?s costas!

Nos vinhatórios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os paralelogramos das adegas,
Que t?m lá dentro as dornas e o lagar!

Que rudeza! Ao ar livre dos estios,
Que grande azáfama! Apressadamente
Como soava um martelar freqüente,
Véspera da saída dos navios!

Ah! Ninguém entender que ao meu olhar
Tudo tem certo espírito secreto!
Com folhas de saudades um objeto
Deita raízes duras de arrancar!

As navalhas de volta, por exemplo,
Cujo bico de pássaro se arqueia,
Forjadas no casebre duma aldeia,
S?o antigas amigas que eu contemplo!

Elas, em seu labor, em seu lidar,
Com sua ponta como a das podoas,
Serviam probas, úteis, dignas, boas,
Nunca tintas de sangue e de matar.

E as enxós de martelo, que dum lado
cortavam mais do que as enxadas cavam,
Por outro lado, rápidas, pregavam,
Duma pancada, o prego fasquiado!

O meu ânimo verga na abstraç?o,
Com a espinha dorsal dobrada ao meio;
Mas se de materiais descubro um veio
Ganho a musculatura dum Sans?o!

E assim – e mais no povo a vida é corna –
Amo os ofícios como o de ferreiro,
Com seu fole arquejante, seu braseiro,
Seu malho retumbante na bigorna!

E sinto, se me ponho a recordar
Tanto utensílio, tantas perspectivas,
As tradiç?es antigas, primitivas,
E a formidável alma popular!

Oh! Que brava alegria eu tenho quando
Sou tal-qual como os mais! E, sem talento,
Faço um trabalho técnico, violento,
Cantando, praguejando, batalhando!

*

Os fruteiros, tostados pelos sóis,
Tinham passado, muita vez, a raia,
E, espertos, entre os mais da sua laia,
– Pobres campônios – eram uns heróis.

E por isso, com frases imprevistas,
E colorido e estilo e valentia,
As haciendas que há na Andalucía
Pintavam como novos paisagistas.

De como, ?s calmas, nessas excurs?es,
Tinham águas salobras por refrescos;
E amarelos, enormes, gigantescos,
Lá batiam o queixo com sez?es!

Tinham corrido já na adusta Espanha,
Todo um fértil platô sem arvoredos,
Onde armavam barracas nos vinhedos,
Como tendas alegres de campanha.

Que pragas castelhanas, que alegr?o
Quando contavam cenas de pousadas!
Adoravam as cintas encarnadas
E as cores, como os pretos do sert?o!

E tinham, sem que a lei a tal obrigue,
A educaç?o vistosa das viagens!
Uns por terra partiam a estalagens,
Outros, aos montes, no convés dum brigue!

Só um havia, triste e sem falar
Que arrastava a maior misantropia,
E, roxo como um fígado, bebia
O vinho tinto que eu mandava dar!

Pobre da minha geraç?o exangue
De ricos! Antes, como os abrutados,
Andar com uns sapatos ensebados,
E ter riqueza química no sangue!...

*

Mas hoje a rústica lavoura, quer
Seja o patr?o, quer seja o jornaleiro,
Que inferno! Em v?o o lavrador rasteiro
E a filharada lidam, e a mulher!

Desde o princípio ao fim é uma maçada
De mil demônios! Torna-se preciso
Ter-se muito vigor, muito juízo
Para trazer a vida equilibrada!

Hoje eu sei quanto custam a criar
As cepas, desde que eu as podo e empo.
Ah! O campo n?o é um passatempo
Com bucolismos, rouxinóis, luar.

A nós tudo nos rouba e nos dizima:
O rapazio, o imposto, as pardaladas,
As osgas peçonhentas, achatadas,
E as abelhas que engordam na vindima.

E o pulg?o, a lagarta, os caracóis,
E há inda, além do mais com que se ateima,
As intempéries, o granizo, a queima,
E a concorr?ncia com os espanhóis.

Na venda, os vinhateiros de Almería
Competem contra os nossos fazendeiros.
D?o frutas aos leil?es dos estrangeiros,
Por uma cotaç?o que nos desvia!

Pois tantos contras, rudes como s?o,
Forte e teimoso, o campon?s destrói-os!
Venham de lá pesados os comboios
E os “buques” estivados no por?o!

N?o, n?o é justo que eu a culpa lance
Sobre estes nadas! Puras bagatelas!
Nós n?o vivemos é de coisas belas,
Nem tudo corre como num romance!

Para a Terra parir há de ter dor,
E é para obter as ásperas verdades,
Que os agrônomos cursam nas cidades,
E, ? sua custa, aprende o lavrador.

Ah! N?o eram insetos nem as aves
Que nos dariam dias t?o difíceis,
Se vós, sábios, na gente descobrísseis
Como se curam as doenças graves.

N?o valem nada a cava, a enxofra, e o mais!
Dificultoso trato das searas!
Lutas constantes sobre as jornas caras!
Compras de bois nas feiras anuais!

O que a alegria em nós destrói e mata,
N?o é rede arrastante de escalracho,
Nem é “su?o” queimante como um facho,
Nem invas?es bulbosas de erva-pata.

Podia ter secado o poço em que eu
Me debruçava e te pregava sustos,
E mais as ervas, árvores e arbustos
Que – tanta vez! – a tua m?o colheu.

“Moléstia negra” nem charbon n?o era,
como um archote incendiando as parras!
T?o-pouco as bastas e invisíveis garras,
Da enorme legi?o do filoxera!

Podiam mesmo, com o que cont?m,
Os muros ter caído ?s invernias!
Somos fortes! As nossas energias
Tudo vencem e domam muito bem!

Que os rios, sim, que como touros mugem,
Transbordando atulhassem as regueiras!
Chorassem de resina as laranjeiras!
Enegrecessem outras com ferrugem!

As turvas cheias de novembro, em vez
Do nateiro sutil que fertiliza,
Fossem a inundaç?o que tudo pisa,
No rebanho afogassem muita r?s!

Ah! Nesse caso pouco se perdera,
Por isso tudo era um pequeno dano,
? vista do cruel destino humano
Que os dedos te fazia com cera!

Era essa tísica em terceiro grau,
Que nos enchia a todos de cuidado,
Te curvava e te dava um ar alado
Como quem vai voar dum mundo mau.

Era a desolaç?o que inda nos mina
(Porque o fastio é bem pior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que o consome,
E a minha m?e cabelos de platina.

Era a clorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitaç?o em festa
Reverberando a luz meridional.

N?o desejemos, – nós, os sem defeitos –,
Que os tísicos pereçam! Má teoria,
Se pelos meus o apuro principia,
Se a Morte nos procura em nossos leitos!

A mim mesmo, que tenho a pretens?o
De ter saúde, a mim que adoro a pompa
Das forças, pode ser que se me rompa
Uma artéria, e me mine uma les?o.

Nós outros, teus irm?os, teus companheiros,
Vamos abrindo um matagal de dores!
E somos rijos como os serradores!
E positivos como os engenheiros!

Porém, hostis, sobressaltos, sós,
Os homens arquitetam mil projetos
De vitória! E eu duvido que os meus netos
Morram de velhos como os meus avós!

Porque, parece, ou fortes ou velhacos
Ser?o apenas os sobreviventes;
E há pessoas sinceras e clementes,
E troncos grossos com seus ramos fracos!

E que fazer se a geraç?o decai!
Se a seiva genealógica se gasta!
Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!
Morre o filho primeiro de que o pai!

Mas seja como for, tudo se sente
Da tua aus?ncia! Ah! como o ar nos falta,
Ó flor cortada, susceptível, alta,
Que assim secaste prematuramente!

Eu que de vezes tenho o desprazer
De refletir no túmulo! E medito
No eterno Incognoscível infinito,
Que as idéias n?o podem abranger!

Como em paul em que nem cresça a junca
Sei de almas estagnadas! Nós absortos,
Temos ainda o culto pelos Mortos,
Esses ausentes que n?o voltam nunca!

Nós ignoramos, sem religi?o,
Ao rasgarmos caminho, a fé perdida,
Se te vemos ao fim desta avenida
Ou essa horrível aniquilaç?o!...

E ó minha mártir, minha virgem, minha
Infeliz e celeste criatura,
Tu lembras-nos de longe a paz futura,
No teu jazigo, como uma santinha!

E enquanto a mim, és tu que substituis
Todo o mistério, toda a santidade,
Quando em busca do reino da verdade
Eu ergo o meu olhar nos céus azuis!

III

Tínhamos nós voltado ? capital maldita,
Eu vinha de polir isto tranqüilamente,
Quando nos sucedeu uma cruel desdita,
Pois um de nós caiu, de súbito, doente.

Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Mas sei dum infortúnio imenso como o seu!
Viu o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, aflito e atônito, morreu!...

De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo
Com tanta crueldade e tantas injustiças,
Se ainda trabalho é como os presos no degredo,
Com planos de vingança e idéias insubmissas.

E agora, de tal modo a minha vida é dura,
Tenho momentos maus, t?o triste, t?o perversos,
Que sinto só desdém pela literatura,
E até desprezo e esqueço os meus amados versos!

ESPL?NDIDA

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores
Do lúbrico Versailles do Rei-Sol!
Aumenta-os com retoques sedutores.
É como o refulgir dum arrebol
Em sedas multicores.

Deita-se com langor no azul celeste
Do seu landau forrado de cetim;
E os seus negros corcéis que a espuma veste,
Sobem a trote a rua do Alecrim,
Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas
Dubarry, Montespan e Maintenon
Se a vissem ficariam ofuscadas
Tem a altivez magnética e o bem-tom
Das cortes depravadas.

É clara como os pós ? marechala,
E as m?os, que o Jock Club embalsamou,
Entre peles de tigres as regala;
De tigres que por ela apunhalou,
Um amante, em Bengala.

É ducalmente espl?ndida! A carruagem
Vai agora subindo devagar;
Ela, no brilhantismo da equipagem,
Ela, de olhos cerrados, a cismar
Atrai como a voragem!

Os lacaios v?o firmes na almofada;
E a doce brisa dá-lhes de través
Nas capas de borracha esbranquiçada,
Nos chapéus com reseta, e nas librés
De forma aprimorada.

E eu vou acompanhando-a, corcovado,
No trottoir, como um doido, em convuls?es,
Febril, de colarinho amarrotado,
Desejado o lugar dos seus tru?es,
Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário,
A minha independ?ncia e o meu porvir,
Para ser, eu poeta solitário,
Para ser, ó princesa sem sorrir,
Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata
Preferiria ir, fardado, aí,
Ostentando gal?es de velha prata,
E de costas voltadas para ti,
Formosa aristocrata!
PROVINCIANAS

I

Olá! Bons dias! Em março
Que mocetona e que jovem
A terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
?s vagas dum verde garço!

Como amanhece! Que meigas
As horas antes de almoço!
Fartam-se as vacas nas veigas
E um pasto orvalhado e moço
Produz as novas manteigas.

Toda a paisagem se doura;
Tímida ainda, que fresca!
Bela mulher, sim senhora,
Nesta manh? pitoresca,
Primaveral, criadora!

Bom sol! As sebes de encosto
D?o madressilvas cheirosas
Que entontecem como um mosto.
Floridas, ?s espinhosas
Subiu-lhes o sangue ao rosto.

Cresce o relevo dos montes,
Como seios ofegantes;
Murmuram como umas fontes
Os rios que dias antes
Bramiam galgando pontes.

E os campos, milhas e milhas,
Com povos de espaço a espaço.
Fazem-se ?s mil maravilhas;
Dir-se-ia o mar de sargaço
Glauco, ondulante, com ilhas!

Pois bem. O inverno deixou-nos.
É certo. E os gr?os e as sementes
Que ficam doutros outonos
Acordam hoje frementes
Depois duns poucos de sonos.

Mas nem tudo s?o descantes
Por esses longos caminhos;
Entre favais palpitantes
Há solos bravos, maninhos,
Que expulsam seus habitantes!

É nesta quadra de amores
Que emigram os jornaleiros
Ganh?es e trabalhadores!
Passam cl?s de forasteiros
Nas terras de lavradores.

Tal como existem mercados
Ou feiras, semanalmente,
Para comprarmos os gados,
Assim há praças de gente
Pelos domingos calados!

Enquanto a ovelha arredonda,
V?o tribos de sete filhos,
Por várzeas que fazem onda,
Para as derregas dos milhos
E molhadelas da monda.

De roda pulam borregos;
Enchem ent?o as cardosas
As moças desses labregos
Com altas botas barrosas
De se atirarem aos regos!

Ei-las que v?m ?s manadas
Com caras de sofrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
V?m ao trabalho, ao sustento,
Com foices, sachos, enxadas!

Ai o palheiro das ervas
Se o feitor lhe tira as chaves!
Elas chegam ?s catervas,
Quando acasalam as aves
E se fecundam as ervas!...

II

Ao meio-dia na cama,
Branca fidalga o que julga
Das pequenas da su’ama?!
Vivem minadas da pulga,
Negras do tempo e da lama.

N?o é caso que a comova
Ver suas irm?s de leite,
Quer faça frio, quer chova,
Sem um mam? que as deite
Na tepidez duma alcova?!

.................................................
.................................................

DESASTRE

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e tr?mulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma m?e erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: “Homem n?o desfaleça!”
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes
Corriam char-?-bancs cheios de passageiros
E ouviam-se canç?es e estalos de chicotes,
Junto ? maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

Viam-se os quarteir?es da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: “que cena t?o faceta!
Reparem! Que episódio!” Ele já n?o gemia.

Findara honrosamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
“Que provid?ncias! Deus! Lá vai para o hospital!”

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas ess?ncias v?m duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que n?o entra o dia!

Um fidalgote brada e duas prostitutas:
“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

Era enjeitado, o pobre. E, para n?o morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
N?o conhecera os pais, nem aprendera a ler.

Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,
Sentira a exalaç?o da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da calica.

Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
“Os vultos, lá em baixo, oh! como s?o pequenos!”
E estremeceu, rolou nas atraç?es da queda.

O mísero a doença, as privaç?es cruéis
Soubera repelir – ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.

Anoitecia ent?o. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: “Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio”?

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
– Conservador, que esmaga o povo com impostos –,
Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro! –
Os filhos naturais ? roda dos expostos...

Mas n?o, n?o pode ser... Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a corrupç?o... que sonhos!
Todos os figur?es cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

E os desgraçado? Ah!Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patr?o negou-lhes a licença,
O inverno estava ? porta e as obras atrasadas.

E antes, ao soletrar a narraç?o do fato,
Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:
“Morreu!? Pois n?o caísse! Alguma bebedeira!”

ELE
Ao “Diário Ilustrado”

Era um deboche enorme, era um festim devasso!
No palácio real brilhava a infame orgia
E até bebiam vinho os mármores do paço.

O champagne era a rodo, o deus era a Folia;
Entre o rumor febril soltava gargalhadas,
Pálido e embriagado, o herói da monarquia.

Riam-se os cortes?os pras taças empinadas,
E referviam sempre os ponches palacianos,
Nas mesas de ouro e prata, em Roma cinzeladas.

Era a repercuss?o dos bodos luculianos!
E os áulicos boçais e os parasitas nobres
Bebiam avidamente os vinhos de mil anos.

Desmaiavam na rua, ? fome, os Jós, os pobres;
Em peles de le?es os régios pés gozavam
E o norte nos sal?es gemia uns tristes dobres.

? louca, os convivas, com força, arremessavam
Garrafas de cristal a espelhos de Veneza
E ? chuva, ao vento, ao frio, os povos soluçavam

Tremia vinolenta a velha realeza,
Caíam na alcatifa os duques e os criados
E, sujos, com fragor, rolavam sob a mesa.

A púrpura nadava em vinhos transbordados,
Cantava um cardeal n?o sei que chansonnette
E o espírito subia aos cérebros irados.

Era um tripúdio infrene o festival banquete!
O rei, b?bado, enfim, vazando o copo erguido,
Quis saudar e caiu, de bruços, no tapete.

E o sult?o em regra em vinhos imergido,
Pisado pelo ch?o, rojou-se pra janela,
Como um lagarto imundo, estúpido e comprido.

A brisa dessa noite, hiberna noite bela,
Deu na fronte real uma fugaz lufada,
E o rei, agoniado, ? luza de cada estrela,

Curvou-se e vomitou nas pedras da calçada.
...............................................................................

Na praça, de manh?, havia, ó rei brutal!
Mont?es de sordidez horrível e avinhada...

--– Nascera o Ilustrado – vômito real!

IMPOSSÍVEL

Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas m?os, eternamente,
As m?os sacerdotais.

Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos t?o ramudos,
Cor de azeitona escura.

Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.

Posso sentir-te em fogo, escandescida,
De faces cor-de-rosa e vermelh?o,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de ver?o.

Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme,
E os mélicos pudins.

Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo,
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraque

E até posso com ar de rei, que o sou!
Dar-te cautelas brancas, minha rola,
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola,

Já v?s, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.

Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o Sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China,
O nosso chocolate.

E podemos até, noites amadas!
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas,
No mesmo travesseiro.

Posso ser teu amigo até ? morte,
Sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte ? tua sorte,
Eu nunca poderei!

Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, ? igreja, isso n?o vou,
Lá essa é que eu n?o caio!

LÁGRIMAS

Ela chorava muito e muito, aos cantos,
Frenética, com gestos desabridos;
Nos cabelos, em ânsias desprendidos
Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,
Deitado no sofá, pés aquecidos,
Ao sentir-lhe os soluços consumidos,
Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe ent?o, de olhos enxutos:
– “Tu pareces nascida da rajada,
“Tens despeitos raivosos, resolutos:

“Chora, chora, mulher arrenegada;
“Lagrimeja por esses aquedutos...
–“Quero um banho tomar de água salgada.”

PRÓ PUDOR

Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada a langorosa.

Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania,
Aquela concepç?o vertiginosa.

Agora, há quase um m?s, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...

Todas as noites ela, ah! sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...

MANIAS

O mundo é velha cena ensangüentada.
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada –,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância, quixotesca.

Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeiç?o canina mais submissa,
Levava na tremente m?o nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!

DE TARDE

Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de gr?o-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampamos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de mel?o, damascos,
E p?o-de-ló molhado em malvasia

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

A FORCA

Já que adorar-me dizes que n?o podes,
Imperatriz serena, alva e discreta,
Ai, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é peito dum Herodes,

Eu antes que encaneçam meus bigodes
Ao meu mister de ama-te hei de pôr meta,
O coraç?o mo diz – feroz profeta,
Que an?es faz dos colossos lá de Rodes.

E a vida depurada no cadinho
Das eróticas dores do alvoroço,
Acabará na forca, num azinho,

Mas o que há de apertar o meu pescoço
Em lugar de ser corda de bom linho
Será do teu cabelo um menos grosso.

NUM TRIPÚDIO DE CORTE RIGOROSO

Num tripúdio de corte rigoroso,
Eu sei quem descobriu V?nus linfática,
– Beleza escultural, grega, simpática,
Um tipo peregrino e luminoso. –

Foi lâmpada no mundo cavernoso,
Inspiradora foi de carta enfática,
Onde a alma candente mas sem tática,
Se espraiava num canto lacrimoso.

Mas ela em papel fino e perfumado,
Respondeu certas coisas deslumbrantes,
Que o puseram, é céus, desapontado!

Eram falsas as frases palpitantes
Pois que tudo, é meu Deus, fora roubado
Ao bom do Secretário dos Amantes

Ó ÁRIDAS MESSALINAS

Ó áridas Messalinas
N?o entreis no santuário,
Transformareis em ruínas
O meu imenso sacrário!

Oh! A deusa das doçuras,
A mulher! Eu a contemplo!
Vós tendes almas impuras,
N?o me profaneis o templo!

A mulher é ser sublime,
É conjunto de carinhos,
Ela n?o propaga o crime,
Em sentimentos mesquinhos.

Vós sois umas vis afrontas,
Que nos d?o falsos prazeres,
N?o sei se sois más se tontas,
Mas sei que n?o sois mulheres!

EU E ELA

Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;

Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijar?o meigamente a tua trança.

Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más idéias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.

Nós teremos ent?o sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que est?o para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.

Outras vezes buscando distraç?o,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiro,
Formando unicamente um coraç?o.

Beatos ou apag?os, via ? paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavaleiro de Faublas...

LÚBRICA...

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos t?o nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoç?es
Tu neles, sempre, espelhas;
S?o lúbricas paix?es
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!

HEROÍSMOS

Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalh?es, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o largo mar, rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.

Contudo, num barquinho transparente,
No ser dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e nágua quase assente,

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

CINISMOS

Eu hei de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E er menos que um Judas empalhado.

Hei de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.

Hei de mostrar, t?o triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei de olhá-la dum modo t?o nervoso,

Que ela há de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há de chorar, chorar enternecida!

E eu hei de, ent?o, soltar uma risada...

ARROJOS

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as m?os mignonnes e aquec?-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clar?o dos relâmpagos noturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando a suas pernas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sab?o das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já n?o tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela vis?o da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
?s mesas espelhentas do Martinho.

VAIDOSA

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chama-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E n?o tens coraç?o, como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que s?o teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, em desvairas e adormeces,
És t?o loura e dourada como as messes
E possuis muito amor... muito amor-própio.